domingo, 4 de julho de 2010

Reflexões lentas - o serviço público e as empresas (3)


Será esta a última mensagem desta série. Não porque se tenha esgotado, ainda que só relativamente ao objectivo da sua colocação neste blog. Seria inesgotável…

Será a última mensagem (pelo menos por agora) porque sinto necessidade de parar. Talvez por cansaço. É que as empresas que tenho vindo a escolher informação são cansativamente repetitivas. E a última que aqui trago, que se esperaria fosse diferente – como, aliás, cada uma das outras – é igualzinha. Na linguagem – no paleio… –, que nada tem a ver com o conceito de empresas de serviço(s) público(s) em que insisto, e pela inserção, melhor se diria no mergulho e afogamento, na esfera da economia de mercado, eufemismo para capitalismo puro e duro.

Ele são as áreas de negócio, a sustentabilidade, os accionistas, os clientes.

A Caixa Geral de Depósitos, como empresa do Estado, teria uma missão. E tem-na. Assim definida:

. «Missão

A CGD tem como Missão:

• A consolidação da sua posição como um Grupo estruturante do sistema financeiro Português, distinto pela relevância e responsabilidade fortes na sua contribuição para:

– O desenvolvimento económico;

– O reforço da competitividade, capacidade de inovação e internacionalização das empresas portuguesas;

– A estabilidade e solidez do sistema financeiro nacional.

Enquanto líder do mercado, a procura de uma evolução equilibrada entre rentabilidade, crescimento e solidez financeira, sempre no quadro de uma gestão prudente dos riscos.»

"Enquanto líder do mercado”, os seus “Principais Objectivos Estratégicos” são:

«A CGD, para além das orientações estratégicas definidas para a globalidade do Sector Empresarial do Estado através de Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 70/2008, de 22 de Abril, está sujeita a orientações de gestão específicas definidas pelo accionista através de Deliberação Unânime, de 11 de Julho de 2008. Essa Deliberação estabeleceu os objectivos para o ano de 2008 bem como os objectivos para o triénio 2008-2010, os quais têm por referência o documento com as “Prioridades Estratégicas do Grupo CGD para o triénio 2008-2010”.

As Directrizes estratégicas orientadoras da actividade são as seguintes:

I. Consolidar a evolução de crescimento rentável (em Portugal e nos principais mercados internacionais) e contribuir para o desenvolvimento económico;

II. Alinhar com as melhores práticas em eficiência operativa e qualidade de serviço;

III. Reforçar as capacidades e mecanismos de controlo e gestão de risco;

IV. Desenvolver uma política de recursos humanos baseada nos pilares dos Valores e Cultura da Empresa, do Conhecimento, da Comunicação e do Desempenho;

V. Apoiar o desenvolvimento cultural e social, promover a sustentabilidade e ser uma referência de Bom Governo em Portugal;

VI. Reestruturar o modelo corporativo.»

. Vale a pena comentar?

Para além do "paleio" (não encontro outro termo!), pergunta-se que Sector Empresarial do Estado é este que assim enquadra a sua actuação:

«1 — As empresas públicas que integram o sector empresarial do Estado devem, sem prejuízo da sua independência em matéria de gestão, prosseguir a sua missão e exercer a sua actividade em articulação com as políticas estratégicas sectoriais definidas pelo Governo, num quadro de racionalidade empresarial, optimização permanente dos seus níveis de eficiência, qualidade do serviço prestado, respeito por elevados padrões de qualidade e segurança.

2 — As empresas públicas que integram o sector empresarial do Estado devem ser socialmente responsáveis, prosseguindo na sua actuação objectivos sociais e ambientais e promovendo a competitividade no mercado, a protecção dos consumidores, o investimento na valorização profissional e pessoal, a promoção da igualdade, a protecção do ambiente e o respeito por princípios éticos.

3 — As empresas públicas prestadoras de serviços de interesse económico geral devem, em especial, promover o equilíbrio adequado, devidamente evidenciado nos seus instrumentos previsionais de gestão (IPG), entre os níveis quantitativos e qualitativos de serviço público a prestar, tendo em vista a satisfação dos utentes, e a respectiva comportabilidade e sustentabilidade económica, financeira e ambiental, no quadro geral das respectivas fontes de financiamento, e da sua compatibilidade com o esforço financeiro global do Estado com o seu sector de actividade, tal como resulta das afectações de verbas constantes do orçamento do Estado em cada exercício.»

. Onde uma referência aos serviços públicos fora da órbita do lucro, da acumulação do capital financeiro, como deus ex-machina?

E, voltando à Caixa Geral de Depósitos, sublinhe-se que:

. «O capital social da Caixa Geral de Depósitos é representado por novecentos milhões de acções com o valor nominal de cinco euros cada uma, podendo ser representadas por um único título. As acções representativas do capital social só poderão pertencer ao Estado.»

. E aí está: o Estado como accionista. Por agora único, mas na óptica do accionista que investiu capital com a intenção de o multiplicar. Esse o único critério por mais voltas que se dê ao texto.
 

Quando, na sequência de outras reflexões, comecei esta série sobre os serviços públicos e as empresas que teriam sido criadas para os cumprir, não adivinhava (se calhar um dedinho estava a adivinhar qualquer coisa…) que ia cair neste imbróglio da PT-Telefónica-BES & tudo o mais que está para vir.

Certo que reabrirei o tema, fecho esta série com duas notas.

Esta abordagem coloca a questão central no processo de privatizações que transformou empresas com o objecto social de prestar serviços públicos, fora da área do mercado em que o que provoca as movimentações é o lucro e não a satisfação das necessidades que as pessoas sentem, em empresas a ganhar crescente e prioritária (ou até exclusiva) vocação para... os negócios.

E ficam-se as análises pela ramaria a partir do pressuposto que as raízes são aquelas, e só aquelas podem ser. Quando foram outras as raízes e o chão, e se transplantaram para ali, para a procura do lucro, para a dita «sustentabilidade financeira» que é fautora de instabilidade e insustentabilidade real.
 
Os CTT ainda não foram privatizados. Luta-se para que o não sejam. Mas a empresa, ou o grupo de empresas, já estão inquinado pelos… mercados.

Ao ler o que define a dita empresa, ou grupo de empresas, lá se tem, nas «orientações específicas» (sublinhados meus)
 
«1. Missão e linhas de orientação específica

1.1 Missão

Os CTT – Correios de Portugal têm por Missão o estabelecimento de ligações físicas e electrónicas, entre os cidadãos, a Administração Pública, as empresas e as organizações sociais em geral. A sua tradição postal é progressivamente reforçada e alargada às actividades e áreas de negócio, onde a vocação logística e comunicacional da Empresa possa ser eficientemente colocada ao serviço dos Clientes.

1.2. Principais linhas de orientação específica

Destaca-se as principais orientações específicas para o Grupo CTT:

- Assegurar a prestação do serviço postal universal, garantindo o acesso dos cidadãos a serviços postais de alta qualidade a preços acessíveis e em condições de equidade, universalidade e continuidade;

- Promover o crescimento e consolidar a liderança nos negócios actuais;

- Desenvolver novas áreas de negócio nomeadamente as de Printing & Finishing, Soluções de Pagamento, Venda de Soluções Postais, Serviços Públicos e Serviços de Interesse Geral, Negócios Internacionais e mercados de influência ou de interesse (ex.: Espanha);

- Gerar crescimento através da Inovação, lançando produtos que tenham a ver com a sua vocação essencial e recorrendo às oportunidades viabilizadas pelo desenvolvimento/ inovação no mundo das comunicações electrónicas (ex.: hub electrónico de comunicações postais, caixa postal electrónica);

- Assegurar o processo de liberalização dos serviços postais, e garantir que a empresa está em condições para entrar no mercado concorrencial.»

Haverá quem considere este o caminho inevitável. E quem estranhe que se denuncie como uma perversão, por via das relações sociais engendradas, do processo histórico, progressivamente libertador do ser humano dos condicionalismos naturais. Apenas se pergunta quantos casos e quanto tempo - e quantos sacrificados… - serão necessários para que a tomada de consciência se alargue até provocar as rupturas que serão, essas sim, inevitáveis.

Sobre os CTT, não se anotam, ainda, as consequências da financeirização reflectidas em endividamento anómalo.

No seu «financiamento», diz-se que

«A empresa não recorre por sistema a capitais alheios para o financiamento dos seus investimentos. Existe contudo uma operação de leasing financeiro contratada em 2002 ao Grupo Caixa Geral de Depósitos para aquisição do terreno onde está a ser construído o novo centro operacional de tratamento de correio do Norte (Maia)».

Depois se verá (espera-se que não!)...


Enquanto hoje se decide a (não) venda da Vivo brasileira à Telefónica espanhola (*), que é sua co-proprietária na Portugal Telecom, depois de espectaculares golpes e golpaças, de negócios e negociatas, estou mesmo com pressa de acabar esta série de reflexões em que me meti. Não que as considere inúteis, não que não as vá continuar... mas, por agora e aqui, chega!
 
Assim, antes da última mensagem, que será sobre duas “empresas de serviço público” muito especiais – os CTT e a Caixa Geral dos Depósitos – deixo uma reflexão de resumo sobre as quatro já referidas rapidamente, embora lentamente na reflexão sobre cada uma, cada uma com a sua especificidade embora todas parecendo, mais do primas, gémeas-entre-si.

E o que quero sublinhar na rápida reflexão de resumo (e lenta…) são duas coisas:

     - todas elas abundam em áreas de negócio, em segmentos de negócio, em… negócios, colocando num plano secundário o que passou a ser um pretexto para os negócios – o abastecimento de água, o fornecimento de electricidade, de energia, as telecomunicações, aquilo que o “cidadão comum” delas esperaria em vez da… "sustentabilidade" e outras palavras e frases deste teor; 

     - esses negócios (áreas, segmentos, o que lhes chamem) assentam em esquemas e “engenharias” financeiras, do que resulta o montante global actual de perto de 30 mil milhões de dívida, só para as quatro empresas, ou quatro grupos, o que é número impressionante e pouco referido quando se fala, ou escreve, ou comenta a dívida do Estado português.

(*) - hoje, a declaração solene do sr. Passos Coelho, conselheiral e tirando primos da cartola, é de um oportunismo de estarrecer e que deveria esclarecer sobre a qualidade destes políticos desta política!

Sérgio Ribeiro no Anónimo Séc. XXI.
 
RESISTIR POR UM MUNDO MELHOR